A SAGA DO FUGITIVO
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O sonho do fugitivo
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Padim Ciço, tive um sonho,
um sonho dóido e doído
e nesse sonho sonhava
até perder os sentidos.
A filha do coronel,
Dom Fábio Aranda de Brito,
me dava um beijo na boca
lá pela beira do rio.

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 


Dormia com minha caboca,
a mãe dos meus sete filhos,
e ela dormia acordada
que é mulher de foragido.
Ela disse: "Gerineldo,
acorda logo, marido,
tu tá sonhando com que,
que geme que nem espírito?"

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 


"Não tô sonhando com nada,
durmo com sono dormido,
sonhava com nossa roça
que o coronel tem destruido",
falei pra minha mulher
do meu sonho arrependido.
"Se tu sonha com a roça
eu sonho com Jesus Cristo".

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 


"Deixa eu dormir, Anunciada,
que é pra acordar bem cedinho,
preciso fugir pro mato
antes que venha os milicos"
"Pode dormir, Gerineldo,
esse teu sonho doído,
sonhando amor impossível
como se tu fosse rico!"

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 



E assim continuei sonhando
aquele meu sonho lindo
com a moça que me amava,
filha do meu inimigo.
Aquela noite na rede
parece tinha feitiço
e os amores que sonhava
era com baita realismo.

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 


Os becos dos nossos corpos,
que nem fosse labirinto,
se convertiam em grutas
e as crateras em abismos.
A filha do coronel
com seu perfume de lírio
me falava com silêncio
e se calava com risos.

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 


Por fim, já na madrugada
- os filhos tavam dormindo -
me despertou a patroa
pra eu continuar fugindo.
Me deu um beijo nas presas
e um farnel para o caminho
e eu continuava sonhando
meu sonho que era delírio.

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 


Talvez por sonhar cansado
ou por coisas do destino
em vez de me enfiar no mato
me escondi atrás dum espinho.
Ficava lá matutando
entre acordado e dormido
e pensando no meu sonho
que inda não tinha esquecido.

Que significa esse sonho?
Diga logo Padim Ciço. 


Padre Cícero responde
pro afilhado fugitivo:
"Nesse sonho tu não é tu,
tu é o coronel inimigo
e quem parece tua amante
era Anunciada, meu filho.
Enquanto aqui tu te esconde,
ele entra como marido
na tua casa onde tuas filhas
inté o chamam de padrinho. 

A rede tinha perfume
que era perfume de rico
mas era do coronel
que confundiu teus sentidos.
Se tu agora te levanta
desse teu esconderijo
vai ver ele na tua cama
arrodeado de carinhos".

Poxa, já entendi meu sonho.
Obrigado, Padim Ciço. 


O fugitivo pergunta sobre Economia
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Padim Ciço, nada entendo
do tal do capitalismo
e ando matutando a toa
com angústia e pessimismo.
Por que é que a Standard and Poors,
aquela agência de risco
nos coloca lá pra baixo
se somos um país tão rico?
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço. 


Em plantando tudo dá,
disse Pero Vaz Caminho
e temos um território
que é inveja de qualquer gringo.
Mas o tal de Merrill Lynch
- cabra de grande prestígio -
sempre que fala da gente
destrata nós que nem lixo.
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço.

Não há guerra de religião
nem sombra de terrorismo
e até que tá razoável
de técnicos e científicos.
Entretanto, o FMI,
olha nós com ceticismo
e, quando solta uma grana,
nos recita o catecismo.
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço. 


Não temos ressentimentos
nem grandes regionalismos,
não tem guerra, só briguinha
de futebol, com vizinhos.
Mas os fundo americanos
tão vendendo nossos títulos
porque dizem que tem medo
do tal contágio argentino.
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço.

A gente tem alegria
e güenta com otimismo
muitos planos, esperando
um que nos tire do abismo.
São 130 milhões,
um grande povo pacífico
mas temos taxa de juros
nas nuvens, até pros ricos.
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço. 


Aqui não é pra ter problema
nem com calor nem com frio.
Tem muita fruta no mato
e muito peixe no rio.
E tem a indústria paulista,
a de Seu Antonio Ermírio,
que é boa de dar inveja
até pros desenvolvidos.
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço.

Temos universidades
onde ensina muito físico,
engenheiro e matemático,
músico, médico e químico.
E nem se fala de artistas
que inda brilha o velho Chico
e choramos de saudades
de Luiz Gonzaga e Vinicius.
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço. 

Temos muito jornalista
que sabe escrever bonito
e em TV tem Rede Globo
de Seu Roberto Marinho.
Mas por que é que não dá certo
e tem cabra até fugindo
pros lados do Portugal
donde os avos tinham vindo?
Me explica de Economia,
por favor, meu Padim Ciço.

Padre Cícero responde
pro afilhado fugitivo:
"É que tem muito safado
na nossa terra, meu filho,
e o maior filho da puta
é o Coronel Fábio Brito,
que é quem come tua mulher
quando tu tá foragido".

Pô, já entendi Economia,
obrigado Padim Ciço. 



Apologia do martelo de dez agalopado
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Foi na praça central de Caruaru;
estavam, Gerineldo e Padim Ciço,
conversando na porta dum cortiço
lanchando, dum farnel, pirarucu.
Então foi que se ouviu maior rebu
e - atentos - foram padre e afilhado
ouvir um cantador meio aloprado
- no entanto, rigoroso e sistemático -
invocar, com lirismo democrático,
o martelo de dez agalopado:

Senhores, eu não gosto de poesia,
acho uma coisa assim... meio careta
pra rimar sempre usando de mutreta,
"Poeta é fingidor", Pessoa dizia.
Assim pensava eu até que um dia,
por mil métricas já desenganado,
me encontrei com um verso atropelado
que me fez revisar esse conceito
e pensei: Vamos ver se levo jeito
no martelo de dez agalopado. 

Quem me fez conhecer o tal martelo?
Egídio - quando não! - velho doutor
do verso popular e professor
de cordel, junto a Fiúza e ao Marcelo.
Poeta de pijama e de chinelo,
vou eu, de português espanholado,
arriscando dar conta do recado
sem errar no "e" fechado e aberto.
Tomara que desta vez fique certo
no martelo de dez agalopado.

Soneto? Para que tanto artifício?
Isso é coisa do ano mil quinhentos,
no dois mil e dois sopram outros ventos,
não precisa de tanto sacrifício.
Rimar quatorze versos acho vício
que poucas vezes é recompensado;
requere-se um esforço que é danado
e afinal, o que dá é decepcionante.
Melhor é o batimento alucinante
do martelo de dez agalopado. 

Tem cabra que tá achando que poesia
consiste em expressar os sentimentos,
não entende que tem outros elementos,
sem eles fica pouca porcaria.
Precisa concissão e de harmonia
para um poema bem estruturado,
fazer fluir legal o palavreado
reservando pro fim uma surpresa,
e o ritmo que acomoda tal beleza
é o martelo de dez agalopado.

Martelo não precisa de cupincha
que ao fim da cantoria bata palma;
fingindo-se de morto chega n´alma,
galope que não zurra nem relincha.
Martelo é surpreender que nem Garrincha
dibrando toda vez pro mesmo lado.
Precisa não ser baita complicado,
isso é que muita gente não consegue.
Dificil é acertar passo de jegue
no martelo de dez agalopado. 


Nem quero ouvir falar verso sem rima,
que é coisa de poeta desconexo:
quem lê, mais duma vez fica perplexo,
pois verso sem rimar só desanima.
Pensar em verso branco me dá grima
e me deixa os cabelos arrepiado.
Quem quiser ser poeta desregrado,
que cante pra si mesmo, se interessa.
Poeta de verdade só se expressa
no martelo de dez agalopado.

A décima espinela é meritória,
seu ritmo surpreendente e elegante,
a rima rigorosa e consonante
e dá para contar mais duma estória.
Mas ao verso de sete falta glória
que sobra ao decassílabo arretado.
Se tu estiver com forças e inspirado,
querendo conquistar um doce amor,
tu te lembra que a décima tem cor
no martelo de dez agalopado. 

Dez versos por estrofe, que não sobra,
dez sílabas por verso até o acento,
barca de dez por dez tem sentimento,
mas sem exagerar, se não soçobra.
Assim completarás singela obra
com dez por dez formando um bom quadrado,
e, querendo ficar mais caprichado,
e bom para saúde que nem rubo,
fazendo dez estrofes tens um cubo
no martelo de dez agalopado.

Ouviu tais maravilhas nosso amigo,
que com o Padre Ciço matutava,
que logo - bom rapaz - se entusiasmava
pensando em se vingar do jeito antigo.
Ninguém o ouviu falando do inimigo
pois ele era do tipo reservado,
mas sei que o que falou tá bem falado
pois disse em sacramento e contrição,
embora nunca vide confissão
em martelo de dez agalopado. 


"Pai Ciço, por favor, vê se me ensina,
preciso me vingar do Coronel,
quem sabe se fazendo um bom cordel
consigo conjurar minha cruel sina!
O canto deste poeta me ilumina,
queria que a mulher volte a meu lado!
Quem sabe mudo o rumo do meu fado
usando uma canção, meu Padim Ciço,
que - dizem - tem poderes de feitiço:
o martelo de dez agalopado!"

Padim Ciço responde: "Tu te manca,
tô vendo tá dificil de entender,
se tu quer recobrar quem mal te quer
melhor é tu entender conversa franca.
Se tu chegar de viola ele te espanca,
jagunço é que não falta ao desgraçado;
tu chega de peixeira bem armado
e arranca as tripas dele; me obedece,
e até que esteja morto vê se esquece
o martelo de dez agalopado". 





Depoimento da mulher do fugitivo
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1
Casei com quatorze anos
e tive um ano por filho,
dos sete filhos que tive
todos os sete estão vivos,
milagre que estou devendo
graças a São Benedito. 

2
Graças a São Benedito
também a vida devia
meu marido, Gerineldo,
que era bom na cantoria
e brilhava nos repentes,
todos da sua autoria. 

3
Todos da sua autoria
são os filhos que pari
menos o Zé das Gaivotas,
perneta que nem Saci,
e se algum outro não é dele
foi porque me confundi. 

4
Foi porque me confundi
- ele sempre andou fugido -
foi no bando do Lampião
que começou ser bandido.
Minha mãe já me dizia
que não serve pra marido.

5
Que não serve pra marido,
isso - minha mãe - já sei.
Bem sei que estou me ajuntando
com mais um fora-da-lei.
No sertão era bandido,
na minha rede era um rei.

6
Na minha rede era um rei
e até prantou uma rocinha
quando mataram Lampião
e ele foi mudar de vida.
Cultivávamos mandioca
e criávamos galinhas.

7
E criávamos galinhas,
felizes que nem a gente,
mas Dom Fábio, o Coronel,
disse que a terra era dele.
Meu marido, Gerineldo,
agiu de modo imprudente.



8
Agiu de modo imprudente
matando sete jagunços,
pôs eles tripas pra fora
depois que já eram defuntos,
no fim juntou os cadáver
o os queimou todos juntos.

9
E os queimou todos juntos
fazendo grande fogueira,
muita gente veio ver,
entre eles o Zé Limeira,
estavam interessados
em ver queimar a sujeira. 

10
Em ver queimar a sujeira,
que ardia pela cachaça
que aqueles sete jagunços
armazenavam na pança.
O Coronel tinha feito
- na partida - uma festança.

11
Na partida uma festança,
no regresso era um velório,
o Coronel derrotado!
Era grande o falatório;
mas Dom Fábio matutava
sua vingança no escritório. 


12
Sua vingança no escritório
planejava com o Juiz,
que era um Doutor de Direito
com um enorme nariz.
Todo dia conseguia
fazer um pobre infeliz.

13
Fazer um pobre infeliz
até que não é complicado
pois o pobre vem ao mundo
com o destino marcado.
Gerineldo foi fugindo
numa mula mal montado. 


14
Numa mula mal montado,
velha de dar aflição,
inda bem que meu marido
conhece bem o sertão.
Pra se esconder na caatinga
era como camaleão.

15
Era como camaleão
o Coronel Fábio Brito,
esperto como nenhum
para mudar de partido
e ficar sempre de bem
com os homens lá do Rio.


16
Com os homens lá do Rio
(inda não era de Brasília)
e tinha até um deputado
que cobiçava sua filha.
O Coronel Fábio Brito
era um bom pai de família.

17
Era um bom pai de família,
veio me dizer em casa,
por isso não me despeja
e nem fala de vingança;
despendindo-se gentil
deixa um presente pras crianças. 


18
Deixa um presente pras crianças
e outro presente pra mim.
Eu não sabia que rico
era generoso assim.
Por não saber dizer não,
acabei dizendo sim.

19
Acabei dizendo sim,
ou - talvez - não disse nada
aceitando suas visitas
como mulher desonrada,
meia jornada na rede,
meia jornada na enxada. 


20
Meia jornada na enxada
até que tu não precisa,
me dizia o Coronel,
descansa mais minha filha
assim fica mais disposta
depois, quando me aacarinha.

21
Depois, quando me acarinha,
depois, quando tu me beija,
teus carinhos são meu pão,
teus beijos minha cerveja.
Eu te amo, sendo rico,
por mais pobre que tu seja. 


22
Por mais pobre que tu seja,
Deus te fez rica em sabores,
teu corpo tem leite e vinho,
teu andar, mandioca e flores,
queriam deitar contigo
sacerdotes e doutores.

23
Sacerdotes e doutores,
por que não um Coronel,
a quem canta Zé Limeira
e outros monstros do cordel,
onde menos se esperava
do teu corpo brota mel. 


24
Do teu corpo brota mel,
que o Coronel nunca viu,
se contar pros seus convivas
vão dizer que ele mentiu,
pensa até que do demônio
é o milagre que surgiu.

25
É o milagre que surgiu
bem maior que o da Maria,
que, nos confins de Juazeiro,
naqueles tempos sabia
cuspir o sangue de Cristo
quando as hóstias engolia. 

26
Quando as hóstias engolia,
o Coronel meditava
que do pecado mortal
disso ninguém o salvava
e que nas chamas do Inferno
os demônios o esperavam.

27
Os demônios o esperavam,
não deixava de pensar
e as palavras engolia
nas horas de confessar,
nenhum padre suspeitava
do mistério em seu pecar. 

28
Do mistério em seu pecar
ficam pegadas na sorte:
o Coronel fica velho
e vai pensando na morte;
pra cruzar essa fronteira
não precisa passaporte.

29
Não precisa passaporte,
nem precisa nem queria
um coronel inimigo
que suas terras pretendia:
jagunços contra jagunços,
coisas da democracia. 

30
Coisas da democracia,
que não tem explicação:
Andou tomando umas ervas
mas não tem mais tem solução,
o Coronel é tão velho
que já não ganha ereição.

31
Que já não ganha ereição,
na política e na cama,
inda deita do meu lado,
inda dizendo que me ama.
De que aquilo não funciona
faz tempo que nem reclama.


32
Faz tempo que nem reclama,
tá vendo perto seu fim;
velhinho é como criança
(das mesmas coisas tá afim)
Eu fico vendo navios:
Gerineldo volta a mim!

33
Gerineldo, volta a mim,
que o jagunço tá distraído,
afia tua peixeira
e esfola o velho dormido,
depois o enrola na rede,
e joga o corpo no rio.