ROMANCE NO CARIRI ----------------- (Cordel em 64 sextilhas) 1 Peço ajuda, Padim Ciço, quero contar uma estória. Que Deus me ilumine o verso e não me falhe a memória para relatar os fatos com minha fala simplória! 2 Era bonito meu vale, no sertão onde nasci, só eu via as estrelinhas vermelhas como rubi, se fechava bem os olhos nas noites do Cariri. 3 Veio uma mocinha linda: "O que o senhor tá fazendo? Por acaso será um poeta desses que vivem sofrendo?" Queria ver os cadernos onde eu ficava escrevendo. 4 Cadernos eu tinha vários, era um pra cada assunto: o vermelho para amor, preto pra louvar defunto e o verde pra Natureza também carregava junto. 5 "Cumé que a beira dum rio dá pra escrever um romance? me conte como é que faz" E eu, olhando de relance, disse assim: "Tá bom, eu conto, me avise quando se canse. 6 "Não vou cansar, não senhor, fico ouvindo do seu lado" "Pois então presta atenção e ouça meu verso inspirado, mas tem que fazer silêncio preu dar conta do recado. 7 Assim contei minha estória que começava no ano da festa do Coronel Itamar, pernambucano que criava quatro filhas num ambiente puritano. 8 Mas uma filha, Maria, de todas a mais bonita, com um garoto da roça tinha amizade esquisita; cedinho, quando amanhece, o rapazinho a visita. 9 Ele nasceu na miséria, fato comum no sertão, cabana de pau a pique com um gêmeo, seu irmão, o qual foi dado a um parente para criar, como um cão. 10 O pai era um pobre peão, homem que nada possuía. Que enxergava nele a moça que só enxergava Maria? Nada mais e nada menos que o belo dom da poesia. 11 Nas palavras do rapaz - milagre da Providência - as estrelinhas do vale viravam poema e ciência: Maria ouvia extasiada na sua casta inocência. 12 De noite, quando sonhava, a mocinha repetia os versos que o trovador lhe recitava de dia. E em missa finge que reza quando recita, Maria. 13 Mas será que neste mundo acaso existe justiça? No que era inocência pura os outros viram cobiça e avisam ao coronel e à sua polícia submissa. 14 Por respeito pelo pai, que tanto o tinha servido, não o deu o velho ao rapaz um castigo mais sofrido: foi mandado pra São Paulo e deu à filha um marido. 15 O marido nâo era ruim - era um doutor da cidade - queria ter muitos filhos e era bom pra caridade: como era rico podia pensar na felicidade. 16 Entretanto, Zé da Roça (que era o nome do rapaz) chega na cidade grande buscando viver em paz. Foi morar com certo primo num cortiço lá do Brás. 17 Quanta armadilha que a vida na estrada do pobre deita! Onde menos se imagina a má sorte fica à espreita e o pobre, sendo inocente, do Destino tudo aceita. 18 O garoto Zé da Roça, logo fazendo amizade com os amigos do primo que era da sua mesma idade, aprendeu as coisas boas e as ruins da grande cidade. 19 De noite não dorme em casa, fica rodando na rua; não pertencendo a ninguém se sente dono da lua e o corpo fica cansado, corpo triste em alma nua. 20 Enquanto os outros assaltam fica vigiando na esquina mas sonha com a sua terra saudoso lá da menina, e, por sonhar distraído, uma luz forte o ilumina. 21 "Quem é você?" "Zé da Roça" "Levanta as mãos, vagabundo! quem é você?" "Zé da Roça" "Não minta, moleque imundo, é o bandido que buscamos, o criminal João Raimundo!" 22 "João Raimundo? Não senhor, nem sei desse tal João, João era o pai do meu pai e Raimundo não sei não, sou Zé como tantos Zé que existem lá no sertão" 23 Essa noite aprende o Zé coisas que antes não sabia: que dá pra ser Zé na roça e João na delegacia. Depois de tanto apanhar nem seu nome conhecia. 24 Os dois amigos da rua, em depoimento rotundo, testemunharam ao juiz que ele era o tal João Raimundo, talvez um dos criminosos mais procurados do mundo. 25 A polícia tá contente pelo sucesso atingido, pois confessa o criminoso mais crimes que o presumido, todo homicídio da zona logo estava resolvido. 26 O coitado Zé da Roça apanha molhado e nu, pendurado em pau de arara, sujo que nem urubu; depois dum juízo sumário foi preso a Carandiru. 27 Lá no quinto pavilhão o Zé da Roça aprendia tudo aquilo que lá fora até agora não sabia. Êta trabalho bem feito o que a Justiça fazia! 28 Virou viciado em maconha, em crack e em cocaína, e contrabandeava fumo, celular e medicina. Participa em rebelião e sobrevive a chacina. 29 Como escrevia direito - isto aqui já foi falado - era sempre o redator de todo comunicado que, por ordem do Comando, para os jornais era enviado. 30 Só pensava Zé da Roça em vingança e liberdade e em encontrar os traidores vasculhando na cidade, e, se achasse João Raimundo, matar ele sem piedade. 31 Os líderes do Comando falavam "Esquece disso, agora tu tá no crime, é só fazer o serviço, é melhor ficar na tua, esperto, quieto e submisso." 32 Na vida mais miserável sempre existe uma ilusão. O sonho do Zé da Roça é a vingança e o sertão, matar e voltar pra terra para esquecer a prisão. 33 Alguns, ao passar os anos, a ilusão vão esquecendo, esses cabras se conformam na vida que vão vivendo e, no fim, ficam contentes se morrer não tá doendo. 34 Um dia o mandam chamar: "Tua sentença tá cumprida, pega tua trouxa e vá embora, sossega e cuida da vida, e enquanto o tempo se passa vê se lambes a ferida" 35 Logo que se encontra livre pensa o Zé na sua vingança, vive de pequenos furtos mas de buscar não se cansa: como não querendo nada pergunta com fala mansa. 36 No mundo da malandragem, brincando de gato e rato, tá no rastro dos traidores juntando boato e fato. Falta pouco pra que um dia com eles faça contato. 37 Bem sabe que, entre bandidos, sempre tem um que delata, alguns o fazem por grana, outros por maldade inata. Também tem quem, por inveja, calunia, mente e mata. 38 Com os ratos do submundo o Zé obtém informação e diz: "Quem trai os traidores de Deus merece o perdão, se encontrar o João Raimundo matarei sem compaixão" 39 Por fim, uma terça-feira acha o primeiro inimigo, a quem disse com frieza: "Faz tempo que te persigo, te garanto que esta noite receberás teu castigo" 40 O segundo comparece pra defender o primeiro. Zé da Roça tá contente, mata os dois, mas o terceiro escapa, de medo morto, pra fazer de mensageiro. 41 João Raimundo, ao receber o recado do bandido, diz "Que venha Zé da Roça! ele ou eu, tá decidido!" O bandido não é covarde mas malvado e destemido. 42 João Raimundo e Zé da Roça se encontram num beco escuro, a paisagem tenebrosa, a negra lua no muro, os dois têm o mesmo olhar e o mesmo semblante duro. 43 Os surpreende a meia noite lutando de igual a igual, os dois com as mesmas armas, na mão esquerda o punhal e o mesmo olhar tava fixo nos olhos do seu rival. 44 As horas vão se passando sem que nenhum dos dois caia, não estranha que os inimigos fossem dois da mesma laia. E a Morte, velha indolente, a entrada triunfal ensaia. 45 Mas sempre acaba vencendo quem odeia com paixão, assim foi com Zé da Roça na luta com seu irmão. O gêmeo morre espetado no sinistro paredão. 46 Com a morte do inimigo nada mais tem a fazer o vencedor na cidade, a que tanto o viu sofrer. Resolver voltar pra terra nem que seja pra morrer. 47 "Zé da Roça, regressaste!" "Me reconheces, Maria?, cadê teu pai?" "Está morto" "Posso ficar?" "Bem queria mas já sou mulher casada" "Me desculpa, não sabia" 48 "Não fique triste, Maria, pois não quero nada não, só quero voltar a ser o que foi meu pai, um peão, quem sabe na tua fazenda tem para mim ocupação" 49 "Não sei, Zé da Roça, não, vou falar com meu marido" Falou a mulher com o esposo que disse sim ao pedido, se bem que a moça o passado o mantivesse escondido. 50 É destinado a tarefas na casa, pois a fiação, assoalho e encanamento precisam manutenção. Ele sabe esses ofícios pois aprendeu na prisão. 51 Os dias vão se passando sem conversar com Maria, mas o contato temido acontece certo dia em que a moça lhe pergunta: "Ainda escreves poesia?" 52 "Maria, então tu te lembras?" "Se me lembro? Como não! tenho todas decoradas como se fosse lição" "Vamos juntos na cachoeira!" "Talvez um dia, hoje não" 53 O amor não morre, não morre se a interrupção foi injusta e amar, amar de verdade, morrer de amor, nada custa. O amante que viveu tudo por amar mais não se assusta. 54 Amar de noite e de dia, amar de amor escondido, mãos que se roçam na casa sob os olhos do marido, beijos trocados às pressas, luxúria em verso proibido. 55 "Ama-me mais!" "Se te amo!" "Como antes?" "Muito mais!" "Que nos espera?" "A morte!" "E depois da morte?" "Paz!" "Não quero morrer!" "Nem eu!" "E se me deixas?" "Jamais!" 56 Era se amar todo dia, era amar sem pensar nada, toda palavra era doce e os beijos eram lufada de brisa verde na noite, de lua quente e molhada. 57 Nesta vida de poeta muitos amores já vi e também ouvi de amores sem contar os que vivi, mas nunca ouvi dum amor como aquele em Cariri. 58 Mas nada dura na vida mais do que dura a Criaçao, e na Criação tudo ocorre pois o eterno é danação. Um dia os surpreende o marido na flagrante transgressão. 59 "O que fizeste, Maria? o que me fizeste, ingrata?" horrorizado o doutor disse ao ver de que se trata. E, puxando seu revólver, mata a Maria e se mata. 60 Antes de morrer, a moça, nos braços do seu amante, disse: "Busca meu fantasma no rio, junto ao mirante em que sonhávamos juntos" E assim falece confiante. 61 Ao terminar minha estória a moça que me escutava (a que - vestida de branco - meus poemas admirava) exclamou: "Tu és Zé da Roça!" Eu, por enquanto, calava. 62 Logo abaixei a cabeça, sem saber bem que sentia, e disse "Tu és o fantasma de minha amada, Maria!" Abraçados, nos amamos até o sol do novo dia. 63 Mas era tudo mentira, não sou Zé da Roça não, nem ela era fantasma pois era tudo invenção deste poeta vagabundo viciado em assombração. 64 E aqui acaba meu romance, corriqueiro como o mundo, carece filosofia e pensamento profundo. Se querem saber meu nome, vou dizer: "Sou João Raimundo!" José Mario Martínez 14/7/2003