Cordelista argentino em Juazeiro -------------------------------- " Ô, cordelista argentino! " Tu não tem vergonha não, " evocando Zé Limeira " sem estudar a lição? Tenho vergonha de nada, sou cordelista de estrada, menestrel por vocação. " Tu és un gringo semvergonha, " faz favor e fica esperto, " tu não distingue nosso "e" " quando é fechado e aberto! Isso, confesso, é verdade, é grande dificuldade e não tenho mais conserto. " Mas a ti não te arripuna " rimar fechado co'aberto " fazendo o mesmo com o "o", " dois sons que nem ficam perto? Não me repugna, qué é isso? me encomendo a Padim Ciço e de vez em quando acerto. " Acerta coisa nenhuma! " tá vendo? Já não acertou, " Padim Ciço não te ouve " e a musa te abandonou! Padre Cícero é paidégua, nem na hora de passar régua ele jamais me faltou. " Me mordeu cachorro doido, " tô afim de brigar contigo, " me responde umas perguntas " para ver se tu és amigo. Pergunta, nego trubado, hoje ando meio avexado, vou responder, se consigo. " Vives evocando a Ciço " no teu canto, companheiro, " mas sabes menos do Padre " que o mais humilde romeiro. " Ve se me responde já: " Quando andaste por Ceará " e em que ano foste a Juazeiro. Eu nunca estive em Juazeiro e nunca um juazeiro vi, vivi vidas muito longas mas longe do Carir. Vou te passar um bizu: nem não cheguei a Caruaru nessas vidas que vivi. Patativa de Assaré me mandaria "cantar lá" mas eu tenho vocação para cantar no Ceará. Trago meu verso azuado e toscamente arrochado com cordas de caroá. Eu andei sonhando muito, aturando vida aflita, e aprendi que a realidade ao sonho observa e imita. Há um sonho que me estremece: Padre Cícero aparece, Lampião e Maria Bonita. Esse sonho - me disseram - só pode ser em Juazeiro, do Norte, pelo Padim, do Sul, pelo cangaceiro. Eu pensei que era do Norte, e acertei não foi por sorte, foi por ver muito romeiro. Vi as ruas Santa Teresa, Conceição, Santa Luzia, formando uma linda praça pro curtir da romaria. A essa praça triangular chamam "ferro de engomar" desde os tempos da Maria. " Não se me adiante, argentino, " não tem Maria nenhuma " no sonho que andou sonhando. " Me sonhe a verdade ou suma! Amigo, em mar agitado e em sonho mal assombrado se navega até na espuma. Essa Maria que eu disse, Maria que também vi, era Maria Araújo, beata do Cariri. Seus milagres verdadeiros na sombra de três juazeiros no meu sonho conferi. As datas das romarias são doze no meu Juazeiro, começa com a de Reis no dia 6 de janeiro. Depois vem São Sebastião, e outro mes a procissão com muitos carros romeiros. A Senhora das Candéias no dia de Iemanjá, sabe Deus se são as mesmas as deusas de lá e de cá. Dia dois de fevereiro, outra festa pro romeiro no coração de Ceará. Dia 12 de setembro, Nossa Senhora das Dores, pro povo se consolar querendo tempos melhores. Se até a mãe de Deus chorava, quem sou eu - me lamentava - pra chorar de mal de amores? Em julho tem vaquejada em homenage ao Padim, três dias inteiros de festa, é farra que não tem fim. Rosinha da Conceição, que não sabia dizer não, nem por isso disse sim. " Chega, argentino maluco, " pára logo José Mario " que já vi que tu de data " sabe mais que calendário! " Teu sonho não tem baião? " Então não foi sonho não, " foi um cochilo ordinário. Os Irmãos Anicetos e o velho Mestre Miguel com suas zambumbas de couro animavam um cordel. Tocam pipoca-baião, por modo de imitação dum cereal que é menestrel. Os pífanos revezavam imitando os animais, os da fazenda e da mata e o povo dançando atrás. A dança era um faz-de-conta, briga de faca e de ponta com mil bandas cabaçais. Enterraram um anjinho e a banda vinha tocando e os berros das carpideiras se ouvia de vez em quando. O anjinho era meu amor, que foi parido com dor e já nasceu definhando. Não se faz mais a zambumba com a pele do carneiro esticada na cabaça pra dar o som verdadeiro. E o pífano de taquara vai ficando coisa rara no meu sonho de Juazeiro. Sete buracos de espeto fazem chorar a taboca, um chorar que se eterniza cada vez que o artista toca. Menina da macaxeira, vindo comigo na feira, bebe versos de mandioca. De junco, palha e bambu, cipós e raiz de palmeiras vi como sas cestas faziam, bolsas, chinelos e esteiras. A de palha colorida dei com promessa de vida a uma cabocla juazeira. Duzentos sessenta e três da Rua Santa Luzia é a Gráfica do Cordel, templo de amor e poesia. A moça que eu paquerava os milagres me contava do Padim e da Maria. Todos tinham um milagre do Padim para contar, milagres que no meu sonho botavam para quebrar. Padim Ciço e o Corisco cruzaram o São Francisco que nem as águas do mar. O Padim chegou em Juazeiro, vindo das terras do Crato, foi no caixa do Banorte pedindo saldo e extrato. Tinha um cartaz que dizia "Tamos filmando, sorria" e o Padim tirou um retrato. O Doutor Marcos Rodrigues examinou a Maria procurando a gengivite que seu sangue produzia. Pesquisou não achando nada, a hóstia era consagrada, de Jesus o sangue fluia. O Bispo disse a Maria: "Vou perdoar teus pecados depois que todos teus truques tu me tiver confessado" Ela disse "Monsenhor, Jesus é meu confessor, por mim está dispensado". O Bispo disse a Maria: "Vou te dar a comunhão, mas vê se respeita a hóstia sem provocar confusão". O Padim disse "Eminência, a moça tem inocência, sem sombra de enganação". O Padim caiu em desgraça com bispos da capital, o acusam de liderança, heresia, coisa e tal. Chamaram a Inquisição, o encerraram na prisão da Polícia Federal. Os dezessete macacos esculpidos por Seu Nino libertaram o Padim daquele injusto destino. Apóstolos de madeira, eles ocultam na feira seu nascimento divino. Padim Ciço fez a guerra à máfia de Fortaleza e virou rei de Juazeiro por modo de muita proeza. Com as putas e os mendigos e os pecadores amigos compartilhava sua mesa. " É melhor parar agora, " argentino pau de venta! " Vá pra casa do chapéu, " que aqui ninguém mais te agüenta! " Esse teu truque é antigo, " não dá pra falar contigo, " o que não sabe tu inventa! Pode guardar a peixeira, que em briga de lanchonete parece tudo tranqüilo mas o Diabo se intromete. O que eu disse não é inventado, metade é sonho sonhado, metade li na Internete.