A SAGA DO FUGITIVO ------------------ O sonho do fugitivo ------------------- Padim Ciço, tive um sonho, um sonho dóido e doído e nesse sonho sonhava até perder os sentidos. A filha do coronel, Dom Fábio Aranda de Brito, me dava um beijo na boca lá pela beira do rio. Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. Dormia com minha caboca, a mãe dos meus sete filhos, e ela dormia acordada que é mulher de foragido. Ela disse: "Gerineldo, acorda logo, marido, tu tá sonhando com que, que geme que nem espírito?" Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. "Não tô sonhando com nada, durmo com sono dormido, sonhava com nossa roça que o coronel tem destruido", falei pra minha mulher do meu sonho arrependido. "Se tu sonha com a roça eu sonho com Jesus Cristo". Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. "Deixa eu dormir, Anunciada, que é pra acordar bem cedinho, preciso fugir pro mato antes que venha os milicos" "Pode dormir, Gerineldo, esse teu sonho doído, sonhando amor impossível como se tu fosse rico!" Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. E assim continuei sonhando aquele meu sonho lindo com a moça que me amava, filha do meu inimigo. Aquela noite na rede parece tinha feitiço e os amores que sonhava era com baita realismo. Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. Os becos dos nossos corpos, que nem fosse labirinto, se convertiam em grutas e as crateras em abismos. A filha do coronel com seu perfume de lírio me falava com silêncio e se calava com risos. Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. Por fim, já na madrugada - os filhos tavam dormindo - me despertou a patroa pra eu continuar fugindo. Me deu um beijo nas presas e um farnel para o caminho e eu continuava sonhando meu sonho que era delírio. Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. Talvez por sonhar cansado ou por coisas do destino em vez de me enfiar no mato me escondi atrás dum espinho. Ficava lá matutando entre acordado e dormido e pensando no meu sonho que inda não tinha esquecido. Que significa esse sonho? Diga logo Padim Ciço. Padre Cícero responde pro afilhado fugitivo: "Nesse sonho tu não é tu, tu é o coronel inimigo e quem parece tua amante era Anunciada, meu filho. Enquanto aqui tu te esconde, ele entra como marido na tua casa onde tuas filhas inté o chamam de padrinho. A rede tinha perfume que era perfume de rico mas era do coronel que confundiu teus sentidos. Se tu agora te levanta desse teu esconderijo vai ver ele na tua cama arrodeado de carinhos". Poxa, já entendi meu sonho. Obrigado, Padim Ciço. O fugitivo pergunta sobre Economia ---------------------------------- Padim Ciço, nada entendo do tal do capitalismo e ando matutando a toa com angústia e pessimismo. Por que é que a Standard and Poors, aquela agência de risco nos coloca lá pra baixo se somos um país tão rico? Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. Em plantando tudo dá, disse Pero Vaz Caminho e temos um território que é inveja de qualquer gringo. Mas o tal de Merrill Lynch - cabra de grande prestígio - sempre que fala da gente destrata nós que nem lixo. Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. Não há guerra de religião nem sombra de terrorismo e até que tá razoável de técnicos e científicos. Entretanto, o FMI, olha nós com ceticismo e, quando solta uma grana, nos recita o catecismo. Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. Não temos ressentimentos nem grandes regionalismos, não tem guerra, só briguinha de futebol, com vizinhos. Mas os fundo americanos tão vendendo nossos títulos porque dizem que tem medo do tal contágio argentino. Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. A gente tem alegria e güenta com otimismo muitos planos, esperando um que nos tire do abismo. São 130 milhões, um grande povo pacífico mas temos taxa de juros nas nuvens, até pros ricos. Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. Aqui não é pra ter problema nem com calor nem com frio. Tem muita fruta no mato e muito peixe no rio. E tem a indústria paulista, a de Seu Antonio Ermírio, que é boa de dar inveja até pros desenvolvidos. Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. Temos universidades onde ensina muito físico, engenheiro e matemático, músico, médico e químico. E nem se fala de artistas que inda brilha o velho Chico e choramos de saudades de Luiz Gonzaga e Vinicius. Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. Temos muito jornalista que sabe escrever bonito e em TV tem Rede Globo de Seu Roberto Marinho. Mas por que é que não dá certo e tem cabra até fugindo pros lados do Portugal donde os avos tinham vindo? Me explica de Economia, por favor, meu Padim Ciço. Padre Cícero responde pro afilhado fugitivo: "É que tem muito safado na nossa terra, meu filho, e o maior filho da puta é o Coronel Fábio Brito, que é quem come tua mulher quando tu tá foragido". Pô, já entendi Economia, obrigado Padim Ciço. Apologia do martelo de dez agalopado ------------------------------------ Foi na praça central de Caruaru; estavam, Gerineldo e Padim Ciço, conversando na porta dum cortiço lanchando, dum farnel, pirarucu. Então foi que se ouviu maior rebu e - atentos - foram padre e afilhado ouvir um cantador meio aloprado - no entanto, rigoroso e sistemático - invocar, com lirismo democrático, o martelo de dez agalopado: Senhores, eu não gosto de poesia, acho uma coisa assim... meio careta pra rimar sempre usando de mutreta, "Poeta é fingidor", Pessoa dizia. Assim pensava eu até que um dia, por mil métricas já desenganado, me encontrei com um verso atropelado que me fez revisar esse conceito e pensei: Vamos ver se levo jeito no martelo de dez agalopado. Quem me fez conhecer o tal martelo? Egídio - quando não! - velho doutor do verso popular e professor de cordel, junto a Fiúza e ao Marcelo. Poeta de pijama e de chinelo, vou eu, de português espanholado, arriscando dar conta do recado sem errar no "e" fechado e aberto. Tomara que desta vez fique certo no martelo de dez agalopado. Soneto? Para que tanto artifício? Isso é coisa do ano mil quinhentos, no dois mil e dois sopram outros ventos, não precisa de tanto sacrifício. Rimar quatorze versos acho vício que poucas vezes é recompensado; requere-se um esforço que é danado e afinal, o que dá é decepcionante. Melhor é o batimento alucinante do martelo de dez agalopado. Tem cabra que tá achando que poesia consiste em expressar os sentimentos, não entende que tem outros elementos, sem eles fica pouca porcaria. Precisa concissão e de harmonia para um poema bem estruturado, fazer fluir legal o palavreado reservando pro fim uma surpresa, e o ritmo que acomoda tal beleza é o martelo de dez agalopado. Martelo não precisa de cupincha que ao fim da cantoria bata palma; fingindo-se de morto chega n´alma, galope que não zurra nem relincha. Martelo é surpreender que nem Garrincha dibrando toda vez pro mesmo lado. Precisa não ser baita complicado, isso é que muita gente não consegue. Dificil é acertar passo de jegue no martelo de dez agalopado. Nem quero ouvir falar verso sem rima, que é coisa de poeta desconexo: quem lê, mais duma vez fica perplexo, pois verso sem rimar só desanima. Pensar em verso branco me dá grima e me deixa os cabelos arrepiado. Quem quiser ser poeta desregrado, que cante pra si mesmo, se interessa. Poeta de verdade só se expressa no martelo de dez agalopado. A décima espinela é meritória, seu ritmo surpreendente e elegante, a rima rigorosa e consonante e dá para contar mais duma estória. Mas ao verso de sete falta glória que sobra ao decassílabo arretado. Se tu estiver com forças e inspirado, querendo conquistar um doce amor, tu te lembra que a décima tem cor no martelo de dez agalopado. Dez versos por estrofe, que não sobra, dez sílabas por verso até o acento, barca de dez por dez tem sentimento, mas sem exagerar, se não soçobra. Assim completarás singela obra com dez por dez formando um bom quadrado, e, querendo ficar mais caprichado, e bom para saúde que nem rubo, fazendo dez estrofes tens um cubo no martelo de dez agalopado. Ouviu tais maravilhas nosso amigo, que com o Padre Ciço matutava, que logo - bom rapaz - se entusiasmava pensando em se vingar do jeito antigo. Ninguém o ouviu falando do inimigo pois ele era do tipo reservado, mas sei que o que falou tá bem falado pois disse em sacramento e contrição, embora nunca vide confissão em martelo de dez agalopado. "Pai Ciço, por favor, vê se me ensina, preciso me vingar do Coronel, quem sabe se fazendo um bom cordel consigo conjurar minha cruel sina! O canto deste poeta me ilumina, queria que a mulher volte a meu lado! Quem sabe mudo o rumo do meu fado usando uma canção, meu Padim Ciço, que - dizem - tem poderes de feitiço: o martelo de dez agalopado!" Padim Ciço responde: "Tu te manca, tô vendo tá dificil de entender, se tu quer recobrar quem mal te quer melhor é tu entender conversa franca. Se tu chegar de viola ele te espanca, jagunço é que não falta ao desgraçado; tu chega de peixeira bem armado e arranca as tripas dele; me obedece, e até que esteja morto vê se esquece o martelo de dez agalopado". Depoimento da mulher do fugitivo -------------------------------- 1 Casei com quatorze anos e tive um ano por filho, dos sete filhos que tive todos os sete estão vivos, milagre que estou devendo graças a São Benedito. 2 Graças a São Benedito também a vida devia meu marido, Gerineldo, que era bom na cantoria e brilhava nos repentes, todos da sua autoria. 3 Todos da sua autoria são os filhos que pari menos o Zé das Gaivotas, perneta que nem Saci, e se algum outro não é dele foi porque me confundi. 4 Foi porque me confundi - ele sempre andou fugido - foi no bando do Lampião que começou ser bandido. Minha mãe já me dizia que não serve pra marido. 5 Que não serve pra marido, isso - minha mãe - já sei. Bem sei que estou me ajuntando com mais um fora-da-lei. No sertão era bandido, na minha rede era um rei. 6 Na minha rede era um rei e até prantou uma rocinha quando mataram Lampião e ele foi mudar de vida. Cultivávamos mandioca e criávamos galinhas. 7 E criávamos galinhas, felizes que nem a gente, mas Dom Fábio, o Coronel, disse que a terra era dele. Meu marido, Gerineldo, agiu de modo imprudente. 8 Agiu de modo imprudente matando sete jagunços, pôs eles tripas pra fora depois que já eram defuntos, no fim juntou os cadáver o os queimou todos juntos. 9 E os queimou todos juntos fazendo grande fogueira, muita gente veio ver, entre eles o Zé Limeira, estavam interessados em ver queimar a sujeira. 10 Em ver queimar a sujeira, que ardia pela cachaça que aqueles sete jagunços armazenavam na pança. O Coronel tinha feito - na partida - uma festança. 11 Na partida uma festança, no regresso era um velório, o Coronel derrotado! Era grande o falatório; mas Dom Fábio matutava sua vingança no escritório. 12 Sua vingança no escritório planejava com o Juiz, que era um Doutor de Direito com um enorme nariz. Todo dia conseguia fazer um pobre infeliz. 13 Fazer um pobre infeliz até que não é complicado pois o pobre vem ao mundo com o destino marcado. Gerineldo foi fugindo numa mula mal montado. 14 Numa mula mal montado, velha de dar aflição, inda bem que meu marido conhece bem o sertão. Pra se esconder na caatinga era como camaleão. 15 Era como camaleão o Coronel Fábio Brito, esperto como nenhum para mudar de partido e ficar sempre de bem com os homens lá do Rio. 16 Com os homens lá do Rio (inda não era de Brasília) e tinha até um deputado que cobiçava sua filha. O Coronel Fábio Brito era um bom pai de família. 17 Era um bom pai de família, veio me dizer em casa, por isso não me despeja e nem fala de vingança; despendindo-se gentil deixa um presente pras crianças. 18 Deixa um presente pras crianças e outro presente pra mim. Eu não sabia que rico era generoso assim. Por não saber dizer não, acabei dizendo sim. 19 Acabei dizendo sim, ou - talvez - não disse nada aceitando suas visitas como mulher desonrada, meia jornada na rede, meia jornada na enxada. 20 Meia jornada na enxada até que tu não precisa, me dizia o Coronel, descansa mais minha filha assim fica mais disposta depois, quando me aacarinha. 21 Depois, quando me acarinha, depois, quando tu me beija, teus carinhos são meu pão, teus beijos minha cerveja. Eu te amo, sendo rico, por mais pobre que tu seja. 22 Por mais pobre que tu seja, Deus te fez rica em sabores, teu corpo tem leite e vinho, teu andar, mandioca e flores, queriam deitar contigo sacerdotes e doutores. 23 Sacerdotes e doutores, por que não um Coronel, a quem canta Zé Limeira e outros monstros do cordel, onde menos se esperava do teu corpo brota mel. 24 Do teu corpo brota mel, que o Coronel nunca viu, se contar pros seus convivas vão dizer que ele mentiu, pensa até que do demônio é o milagre que surgiu. 25 É o milagre que surgiu bem maior que o da Maria, que, nos confins de Juazeiro, naqueles tempos sabia cuspir o sangue de Cristo quando as hóstias engolia. 26 Quando as hóstias engolia, o Coronel meditava que do pecado mortal disso ninguém o salvava e que nas chamas do Inferno os demônios o esperavam. 27 Os demônios o esperavam, não deixava de pensar e as palavras engolia nas horas de confessar, nenhum padre suspeitava do mistério em seu pecar. 28 Do mistério em seu pecar ficam pegadas na sorte: o Coronel fica velho e vai pensando na morte; pra cruzar essa fronteira não precisa passaporte. 29 Não precisa passaporte, nem precisa nem queria um coronel inimigo que suas terras pretendia: jagunços contra jagunços, coisas da democracia. 30 Coisas da democracia, que não tem explicação: Andou tomando umas ervas mas não tem mais tem solução, o Coronel é tão velho que já não ganha ereição. 31 Que já não ganha ereição, na política e na cama, inda deita do meu lado, inda dizendo que me ama. De que aquilo não funciona faz tempo que nem reclama. 32 Faz tempo que nem reclama, tá vendo perto seu fim; velhinho é como criança (das mesmas coisas tá afim) Eu fico vendo navios: Gerineldo volta a mim! 33 Gerineldo, volta a mim, que o jagunço tá distraído, afia tua peixeira e esfola o velho dormido, depois o enrola na rede, e joga o corpo no rio.