A estória que vou contar é a de Jorge Cantor, que soube ser o melhor no seu jeito de cantar. Sabia se preocupar pela existência de Deus; no seu tempo não havia ateus para discutir tal ciência e - já se sabe - é imprudência discutir com fariseus. 2.- Se Deus criou este mundo - se perguntava Cantor - deve ter tido um criador, que seria um "Deus Segundo". Tal pensamento fecundo do Deus Segundo e Primeiro o levou a um Deus Terceiro, que aos dois primeiros criou, e a quem um Quarto inventou, todos eles sem parceiro. .- O Quinto criou o Deus Quarto e de ter criador precisa, e assim - Cantor analisa - o Céu de Deuses é farto. Em metafísico parto e quantidade infinita, por trás do enésimo agita seu "Ene-mais-um" criador; nosso herói, já professor, com tantos deuses se excita. 4.- Mas este grande conjunto (Um, Dois, Três, Quatro e demais) vai ver foi criado em paz por "Outro Deus", todo junto. O novo Deus não é defunto, Cantor o chama de Omega e brinca de cabra-cega com este Deus singular que não queria brincar; oh série que não sossega! 5.- Omega-Mais-Um, Mais-Dois, Mais-Três, Mais-Quatro, Mais-Cinco, segue Cantor com afinco contando Deuses depois. A "Dois Omega" acha, pois não estava muito escondido e percebe - precavido - de "Três Omega" a existência, chegando assim, com paciência, a "Omega Omega" enrustido. .- "Omega Omega" é quadrado, logo tem "Omega Cubo"; saem Omegas por um tubo que por nada é limitado. Nesta seqüência, arretado, "Omega-Elevado-à-Omega" se eleva à Omega e trafega se elevando uma vez mais. Tem muitos Deus ordinais brincado de pega-pega. .- Sentindo necessidade daqueles Deuses contar, Cantor passa a calcular sua cardinalidade. Por mais imortalidade que toda a Deusada tem, sua conta revela bem (usa métodos certeiros) que com números inteiros dá pra contar este Além. 8.- Longe de estar satisfeito, Jorge Cantor perguntou qual foi o Deus que criou os Deuses de inteiro jeito. Este Deusão, tão perfeito, criou mais que os anteriores; sacerdotes e doutores tinha a Santa Mãe Igreja mas não compram a peleja nem padres nem professores. - Ao Deus que Deuses criava numa maior quantidade, com a maior dignidade, de "Omegão" apelidava. Mas aqui não terminava, pois o cabra era incomum, Omegão não era Ogum e o número que ele cria, cujo nome não sabia, passa a chamar de "Alef-Um". 10.- "Alef-Zero" é quantidade dos números naturais, inteiros e racionais, provou com simplicidade. Mas achou otra verdade com método diagonal: que todo número real não pode ser numerado e o primeiro Deus safado é este Omegão ordinal. O conjunto dos reais é de verdade maior (assim dizia Cantor) que aquele dos naturais. A quantidade dos tais será a mesma que Alef-Um? Ninguém sabia. Nenhum doutor entende a pergunta. "Ele está louco" barrunta a Academia em zumzum. - A quantidade dos reais, "Dois à Alef-Zero elevado" é a de Partes (tá provado) dos honestos naturais. Existirão cardinais entre Alef-Zero e tal bicho? Cantor, no maior capricho, com a conjetura luta; "Parece que tá biruta", se propagava o cochicho. Mal sabia a Academia que o que a Cantor preocupava com Deus se relacionava, pois ele tudo escondia. Os conselhos não ouvia, não lhe importava o bulício, falavam "Que desperdício, um cara tão talentoso!" Seu destino tenebroso foi morrer louco no hospício. 14.- Naqueles tempos surgiu David Hilbert, um sujeito que levava muito jeito como bem logo se viu. Homem sereno e gentil, e pouco afeto a loucuras, classificou conjeturas e as questões mais danadas para manter ocupadas as gerações futuras. 15.- Seu David Hilbert pensava, com sua grande autoridade, que tudo que era verdade demonstração precisava. É por isso que enunciava pra sábios e professores problemas que mil doutores não resolviam (que horror!) e a Hipótese de Cantor é dos problemas maiores. 16.- David Hilbert acredita, veja só, santa inocência, que descansa a Augusta Ciência na axiomática finita. Se algo é verdade - medita- de prova tem precisão, e se não for, mais razão para provar o contrário. Deus põe verdades no armário e o cientista é seu ladrão. 17.- Muito gênio se dedica à Hipótese de Cantor. Quem a provar é o maior! nas faculdades se explica. Não conseguem. Tudo indica que é difícil pra xuxú. Se a provarem, o rebú vai percorrer o planeta; há de ser prova porreta digna do maior guru. 18.- Exatamente no ano triste em que morre Gardel um tal de Kurte Godel descorre em parte este pano. "Ah, vai entrar pelo cano quem crer que tudo é provável!" Que tudo não é demonstrável prova este sábio alemão, foi um trabalho do cão mais certamente admirável. 19.- Agora peço aos ouvintes que prestem muita atenção pois já vem demonstração sem enfeites nem requintes. É nas décimas seguintes que, de forma bem discreta, é provada que incompleta será qualquer coleção de axiomas com pretensão de faturar a gorjeta. 20.- (O teorema de incompletude de Gödel) "Isto não é demonstrãvel": esta sentença é verdade pois, se fosse falsidade ela seria provável. Esta expressão tão notável, menos ética que estética, na sua forma sintética dá o teorema matemático que nos diz, de modo enfático, que algo falta na aritmética. 21.- O Teorema de Godel, que demonstramos acima, provocou pánico e grima na Lógica do Cordel. Perdia Hilbert o anel ganhado com tanta dor? E a Hipótese de Cantor com isto, como é que fica? Temmais de um que se estrumbica pisando acelerador. 22.- Será a Hipótese verdade que não se pode provar? Difícil acreditar nessa possibilidade. Mas, além da raridade, na matemática balsa, o gênio Godel realça o prova um dia, no albor, que a Hipótese de Cantor não é nem verdade nem falsa. 23.- Tem coisas que - estando certas - não se podem demonstrar, outras não dá pra provar porque são - pra sempre - incertas. Depois de tais descobertas do mestre Kurte Godel, o filósofo viu mel onde afinar seu violão e eu, com singela emoção, lhe dediquei este cordel. 24.- Afinal, em Deus pensando, Cantor fez muitos teoremas e se turbou nos problemas dum Deus que estava faltando. Hilbert, Godel, ajudando, criaram mais confusão. Nos caminhos da Razão se avança meio de lado; às vezes ser apressado não garante a solução. J. M. Martínez 10/3/2002